Por:: Flávio Lerner
O que você conhece sobre a cena eletrônica de Porto Alegre? Conectada com o que rolava em São Paulo e na Europa, entre o fim dos anos 90 e começo dos anos 2000, foi referência no país, com clubes históricos como Fim de Século e Spin, e revelando DJs como Fabrício Peçanha. A partir da segunda metade dos anos 2000, a cena foi morrendo; instaurou-se uma cultura de festas em que o mais desejado eram as canções — fossem de pop radiofônico, rock ou “indie”. Os jovens não queriam saber de sets coesos, boas mixagens ou músicas novas, mas cantar a plenos pulmões seus hits favoritos. A cultura DJ respirava por aparelhos, sobrevivendo em pequenos focos de resistência, com festas como Neon [encerrada no ano passado, depois de nove anos] e Disc-O-Nexo, que segue na ativa e acaba de completar uma década
Foi só nos últimos três anos que esse jogo começou a virar; uma nova geração entrou na onda, núcleos e festas dos mais variados foram pipocando e o techno virou hype na capital gaúcha. Coincidentemente — ou não —, três é também a idade do coletivo Arruaça, que, inspirado pelos coletivos de festas de rua de São Paulo, teve papel fundamental para trazer esse movimento de ocupação do espaço público em Porto Alegre e ajudar no resgate dos valores da cultura de pista — sobretudo no papel político e social da pista de dança.
A celebração dos três anos rola na tarde deste domingo de páscoa, com ninguém menos que o grande DJ Tahira como atração. Abaixo, você confere mais dessa história toda em um papo que bati com os “arruaceiros” Gabriel Bernardo [GB], BRF e Kika Lopes:
HOUSE MAG: Contem um pouco mais sobre essas origens do coletivo: como e por que começaram com a Arruaça, quantos vocês são hoje, como se organizam…?
GABRIEL BERNARDO: A Arruaça surge como materialização de um desejo, mas também frente a uma necessidade. Em 2013, quando começamos a desenhar nas nossas mentes um coletivo que gostaríamos de construir, o mundo todo vinha acompanhando uma série de movimentos que, em última instância, questionavam a farsa da democracia representativa e propunham mais participação. Dentro desse contexto, os movimentos de ocupação dos espaços públicos nas cidades ganharam muita força. As maneiras de fazer política também estavam sofrendo modificações, e as ocupações culturais e artísticas cresciam como alternativa à política tradicional, que costuma ser “séria”, apartada do prazer.
Nós víamos Porto Alegre como uma cidade com um circuito cultural empobrecido dentro do nicho que apostamos, que é a cultura DJ. Encontrávamos poucas opções de festas que resistiam bravamente, mas que ou eram caras, o que elitizava essa experiência e limitava ela dentro do universo da cidade, ou que aconteciam em clubes que se estruturavam de uma maneira obsoleta, com pouco espaço para que a arte circulasse e que as pessoas pudessem experimentar a festa como acontecimento rico e espaço de liberdade.
No início dos planos éramos três, que no momento de construir a primeira festa já viraram quase dez, que chegam hoje a quinze. Mas o envolvimento com o coletivo acontece de maneira volátil, as pessoas se envolvem nos pontos que têm mais vontade. Temos um grupo no Facebook com centenas de pessoas, um grupo mais operacional com menos de vinte, e nas festas já chegamos a ter duas mil. Todos esses participam do coletivo de alguma forma.
HM: Quando conversei com o GB em 2015, ele me falou que a festa não dava lucro e mal conseguia se pagar — em São Paulo, essa premissa fez com que o movimento de festas de rua acabasse decaindo. O sucesso aparente da Arruaça dá a impressão de que vocês conseguiram contornar um problema extremamente difícil. Como organizam esse planejamento financeiro?
GB: Infelizmente, é só impressão. A gente vai tentando contornar, mas isso acontece festa por festa. Não tem jogo ganho. Felizmente, nas últimas edições a gente conseguiu financiar de alguma forma — a gente vem conseguindo contornar mais pontualmente. A solução seria as pessoas perceberem que precisam se envolver mais com a produção da festa, no mínimo com o financiamento.
BRF: Viemos nos empenhando pra desenvolver essa comunicação melhor. Essa é a nossa primeira vez com financiamento coletivo, podemos melhorar. É um formato que pode ser muito produtivo pra nós e pra uma galera que tiver a fim de colar junto e de alguma forma divulgar seu trampo.
HM: O que exatamente significa ocupar esse espaço público, e como as ações da Arruaça transformam, na prática, a sociedade em que ela atua?
GB: Ocupar o espaço público é fazer política. Entendendo a política enquanto produção de realidade, através de práticas e discursos, esse movimento nos coloca na disputa por essa produção de mundo. O simples fato de ocupar durante a noite uma área da cidade que toda a opinião pública nos faz acreditar que é impossível de ser ocupada, normalmente através do terrorismo feito em relação à segurança, já tem efeitos práticos muito importantes na vida das pessoas. A gente afirma que a cidade deve ser vivida, que existe um motivo para nos fazerem acreditar que a rua é perigosa e que precisamos nos encastelar dentro de grades. Então, mostrar pras pessoas que agindo coletivamente podemos estar durante a madrugada em uma praça no centro da cidade, já permite uma mudança de olhar. Agora, fazer isso com uma festa é ainda mais louco. Fazer festas entre dois museus, que, infelizmente, ainda são associados a uma visão de cultura higienizada, quase morta, também permite que você enxergue aquele local com outros olhos. A gente atua com a política da profanação, no sentido que o [filósofo Giorgio] Agamben dá a ela: permitir que as coisas sejam usadas com outros objetivos, assumam novas funções. Então uma praça passa a ser pista de dança, e uma festa passa a ser movimento político.
HM: Muitas das pautas do coletivo — lutas contra machismo, homofobia, elitismos e injustiças sociais — são facilmente confundidas com um posicionamento de esquerda, embora não necessariamente o sejam. Num Brasil politicamente tão binário, se associar a um dos “polos” pode facilmente gerar ranços. Afinal, a Arruaça se considera um coletivo de esquerda?
GB: A maioria das pautas que tocamos para além das festas costumam ser identificadas como de esquerda, mas, dentro de uma prática profanadora, talvez esse seja mais um símbolo que estamos dispostos a profanar. Dizer-se de esquerda é algo banal, e, de fato, nos preocupamos mais em romper com o binarismo do que alimentá-lo.
KIKA LOPES: Somos um coletivo de minas, negros, LGBTs, então unimos nossas lutas particulares para além do coletivo. Conseguimos romper barreiras dentro da nossa bolha, e acho que externalizamos isso de uma maneira mais escrachada, como forma de romper mesmo com padrões já estabelecidos. Ainda mais em uma cena de música eletrônica, na qual estamos nos inserindo, que deveria ser de minorias por causa de suas origens, e hoje é deturpada por barões de elite.
HM: Mobilizar um grande grupo de pessoas pra fazer festa na rua, em lugares públicos, envolve uma série de questões. Há as legalidades, as burocracias e os limites impostos pelo poder público; há a vizinhança; e há a questão da segurança. Estas são de fato as principais tensões na hora de fazer as festas? Como lidam com elas?
GB: Essas são as principais questões se encararmos a ocupação através de um olhar gentrificador. Essas questões são totalmente pertinentes à classe média e a visão que ela tem sobre a rua. Burocracias com poder público, política da boa vizinhança e segurança pública. Evidentemente são questões que nos tocam o tempo todo. Ao ocupar uma praça ou um viaduto durante a noite, por mais que não exista vizinhança, existem os moradores de rua. Ao evitarmos áreas com vizinhança e residências, nos deparamos com isso, com a ocupação de espaços que já são utilizados por populações que, via de regra, são invisibilizadas. Essa é a primeira tensão com a qual nos deparamos, mas que, se bem resolvida, nos ajuda em todas as demais.
É fundamental construir com a cidade um movimento de ocupação que respeite as pessoas que vivem nos locais. Para isso, lidar com a questão da segurança com receio em relação à polícia é fundamental. Infelizmente, o recurso da polícia como viabilizadora da segurança costuma ser uma prática higienista, que não permitiria que várias pessoas — que muitas vezes já ocupavam aquele local — participassem da festa, porque seriam intimidadas. Tentar resolver a questão da segurança coletivamente, entre os frequentadores da festa e a população local, é uma das tensões mais importantes. Construir uma prática de cuidado de si e do outro que torne a tarefa da segurança uma tarefa de todos. Conviver com o “povo da rua” é um dos efeitos práticos mais interessantes da festa de rua.
HM: As primeiras festas da Arruaça pareciam ser mais ecléticas: houve edições com bandas, e os DJs tocavam sons mais orgânicos e étnicos. De repente, rolou uma guinada forte para o techno, e hoje parecem estar voltando a acenar com outras vertentes — a contratação do Tahira é um grande indicativo disso. A ideia de abrir pra mais vertentes agora é estratégica, no sentido de abraçar o que vai voltar a fazer sucesso? Vocês são mais seguidores ou lançadores de tendências?
KIKA: O lance de trazermos o Tahira é pra resgatar a nossa história, que foi desenvolvida naturalmente, sem muita demagogia ou estratégia. A pretensão de lançarmos tendência está longe de nós como coletivo, mas seguimos aquilo que acreditamos, dependendo também de qual a vibe de cada indivíduo.
GB: Somos influenciados por movimentos que a música eletrônica vive no Brasil e no mundo, mas, ao mesmo tempo, a sonoridade do coletivo acompanha também o desenvolvimento artístico dos seus DJs e produtores. No início não rolava tanta música eletrônica, também, porque poucos sabiam mixar. À medida que a galera foi se interessando por mixagem, cresceu o interesse. Isso acabou indo pra um lado mais techno, acompanhando uma tendência mundial, mas também porque, tecnicamente, por ser mais quadrado, é mais fácil de mixar. Hoje, que a galera já está mais familiarizada com a mixagem e com os equipamentos, podemos dizer que esse interesse se expande paras outro gêneros.
* Você pode conferir todos os detalhes da Arruaça de três anos aqui.